10 julho 2008

Análise Bioenergética - a linguagem do corpo em terapia

O corpo da vergonha: caráter e brinquedo

Autor: John Conger, Ph.D

O pintor “leva o seu corpo consigo”, diz Valery. Com efeito, não podemos imaginar como uma mente poderia pintar. É emprestando o seu corpo ao mundo que o artista transforma o mundo em pinturas.
Maurice Merleau-Ponty

Parece surpreendente que, para toda a literatura publicada sobre a vergonha – um afeto que se expressa psicológica e fisiologicamente, um afeto observável através de manifestações físicas como rubor, suor, aumento de batimentos cardíacos e olhar abatido – se tenha escrito tão pouco sobre o corpo da vergonha. A vergonha se abate sobre os alicerces do self corporificado: nosso grounding, nosso senso de limites, nossa respiração inibida, nosso acesso a uma gama de emoções e nossa capacidade de nos presentificar.

Silvan Tomkins (1962, 1963, 1987) definiu a vergonha como um dos nove afetos inatos, uma resposta biológica encontrada nos bebês antes que as influências culturais possam modelá-los. Ao mesmo tempo, ele situou a representação da vergonha na face, por causa da musculatura intricada e sensível presente na expressão facial: “Proponho que o afeto seja, em primeiro lugar, um comportamento facial”. (p. 138)

Porém aqueles dentre nós que se formaram nas difíceis tradições da psicoterapia somática de base reichiana como a Análise Bioenergética têm, na minha opinião, uma avaliação mais complexa da linguagem corporal e do impacto do trauma, da vergonha e da perda emocional no ser corporal como um todo. No presente artigo, farei a distinção entre vergonha de reconhecimento, vergonha de desonra, vergonha de discrição e vergonha traumática na sessão clínica e a relação entre a experiência de vergonha no início da infância e o desenvolvimento do caráter. A vergonha quebra a formação de um self central primitivo, o que se reflete no corpo por uma impossibilidade de se enraizar, estabelecer bons limites, por uma respiração restrita, uma perda de diversidade emocional e um enfraquecimento no desejo de se presentificar. O surgimento espontâneo do self na terapia é marcado pela capacidade de brincar.

Na verdade, escapou durante anos às mais brilhantes mentes da Psicologia uma compreensão clara da vergonha, um afeto que reúne histórias e lembranças suficientemente penosas para fazer com que as escondamos. Do ponto de vista lingüístico, a vergonha está relacionada ao nosso “couro”, nossa pele, pela raiz indo-européia “skam”, “sken” (Nathanson, 1987, pg.8). A vergonha ocorre sempre que nos sentimos “do lado de fora”, quando ficamos desconfortavelmente à parte. Thomas Scheff (19944) explica: “A vergonha parece surgir de nossa necessidade de sentir o grau certo de conexão com os outros. A vergonha é a emoção que acontece quando nos sentimos excessivamente próximos ou distantes dos outros. Quando próximos em demasia, nos sentimos expostos e violentados; quando distantes em demasia, nos sentimos invencíveis ou rejeitados.” (p. 46)

A vergonha se estende além do mero sentimento. Podemos imaginar uma vergonha futura e evitá-la. Imaginamos nossa ação projetada no tempo e agimos, em conseqüência, com discrição. A vergonha de desonra e a vergonha de discrição foram compreendidas como estando a serviço da preservação e reparação de vínculos entre nós e a comunidade. Carl Schneider (1977) afirma: “Se, por um lado, a vergonha de discrição oferece suporte ao ordenamento pessoal e social do mundo, a vergonha de desonra, por outro lado, é uma experiência dolorosa de desintegração do próprio mundo”. (p. 22)

Como a vergonha tem a ver com a natureza de nosso vínculo com os outros, ela foi associada às primeiríssimas quebras de atenção entre mãe e filho. Broucek (1991) diz que “a vergonha envolve a sensação central de identidade” (p. 20). Ele assinala três fontes de vergonha: as primeiríssimas quebras de atenção da mãe, a objetificação de si mesmo e, em terceiro lugar, a “experiência crônica ou episódica de não ser amado(a), ser rejeitado(a) ou usado(a) como bode expiatório por outras pessoas significativas”. (p. 24)

A vergonha não foi apenas compreendida como um afeto interpessoal como também foi estudada como modalidade intrapsíquica. Heinz Kohut (1975, 1996) atribui um lugar central à vergonha em seu sistema de self bipolar. E o que acho particularmente gratificante neste trecho que cito de suas palestras em Chicago (1975) é sua consciência corporal, sua descrição da criança envergonhada em contraste com a criança altiva.

“O bom equilíbrio narcísico tende a ser experimentado como um calor que se irradia, bochechas vermelhas, olhos brilhantes, lábios cheios, esse tipo de coisa – complementos raramente notados de auto-estima elevada”.

E eu acrescentaria outro complemento interessante: um reforço da postura ereta. Os músculos das costas ficam rijos, a cabeça se mantém alta, os ombros para trás; há um senso de triunfo, há um movimento de elevação que não acredito estar relacionado em princípio ao exibicionismo fálico na maioria dos casos...

A vergonha decorre então de um fracasso de todas aquelas experiências das quais emergem normalmente a auto-estima, a altivez, o exibicionismo acolhido. A altivez consiste de todas aquelas experiências que nutrem um sentido de si seguramente positivo. Todas elas criam um pano de fundo emocional contra o qual experimentamos as sensações de queda, a vivência interna de ter um self derrubado (experimentado muitas vezes como o oposto da fantasia grandiosa de voar), em que o colapso do exibicionismo prazeroso se torna dominante. Em vez de sentir um calor suave, nossa pele torna-se insensível, grosseiramente irregular e esburacada ou, alternadamente, há uma oscilação entre a fria palidez e o calor ressequido, porque algo saiu da ordem.”(p.245-246)

Aquela “receptividade acolhedora e empática” que buscamos nos outros quando crianças e, depois, adultos, nos é necessária como o oxigênio que respiramos; ela é essencial para o desenvolvimento saudável de um self vital, coeso. Embora não escreva extensamente sobre a vergonha, Kohut a coloca ainda assim em um lugar central na sua abordagem terapêutica, como a sombra do olhar narcísico sobre si mesmo. “A utilização do espelhamento empático para denotar a aceitação do self do paciente, em particular, pode ser facilmente entendida como uma das técnicas necessárias para ajudar os pacientes a lidar com suas experiências de vergonha”, diz Lewis. (1987, p. 94)

Andrew Morrison (1989) ampliou o estudo de Kohut mostrando que “a vergonha é a principal resposta ao fracasso face ao (ego) ideal, uma rachadura na experiência de self”. (p.20)

Apresentei uma breve visão geral da vergonha. Gostaria de prosseguir discutindo a natureza mais específica da vergonha de reconhecimento, a traumática e suas aplicações na Bioenergética. Através da vergonha de reconhecimento, tomamos consciência de nossa natureza escondida e sombria por intermédio do olhar do Outro, um amigo ou, talvez, um terapeuta, mediada na maioria das vezes pela confiança mútua; porém outras vezes somos desconfortavelmente enxergados por um inimigo, um oponente. A assimilação dessa visão não fica estranha ou destrutiva. A nossa objetificação é transformadora, mesmo que sob o choque de uma exposição intrusiva, integrando partes da cisão com os nossos “eus” corporais. Em contraste, a vergonha traumática experimentada na abuso e na desonra destrói a confiança e nos desorganiza, levando-nos a um estado de captura. A “assimilação” da experiência abusiva fica estranha e destrutiva.

Desenvolvi o termo vergonha de reconhecimento a partir da ampla discussão de Sartre sobre vergonha em O ser e o nada, que me chamou a atenção nos escritos de Carl Schneider (1977). Diz Sartre (1956, 1992):

“A vergonha opera portanto uma relação íntima de mim comigo mesmo. Através da vergonha, descobri um aspecto do meu ser... Com a emergência do Outro, sou colocado em posição de exercer um julgamento sobre mim mesmo como objeto, pois é como objeto que apareço ao Outro... A vergonha é, por natureza, reconhecimento. Reconheço que sou como o Outro me vê... Assim, a vergonha é vergonha de si mesmo diante do Outro: essas duas estruturas são inseparáveis. Porém, ao mesmo tempo, preciso do Outro para perceber plenamente todas as estruturas do meu ser”. (p. 301-303)

Deixe-me repetir a brilhante observação de Sartre: “A vergonha é, por natureza, reconhecimento. Reconheço que sou como o Outro me vê”. Há pessoas em nossas vidas que podem falar sobre nós de uma maneira tão tolerável que poderíamos nos juntar a elas por um momento e nos vermos como um objeto em um mundo de outros. Nos deslocamos de um mundo interno subjetivo para um olhar externo, dirigido a nós como objeto. A vergonha de reconhecimento dá suporte à nossa consciência de sermos separados e diferenciados dos outros, um resultado natural do conflito edípico, quando nossa fusão exclusiva com a mãe é desafiada pela presença de outra pessoa. Ao manter uma perspectiva alternativa, alcançamos novos entendimentos, demonstrados por mudança interna e comportamental.

Quando crianças, houve um período, um estágio de desenvolvimento entre 18 e 24 meses em que nos reconhecemos em um espelho pela primeira vez e nos experimentamos como self corporal sentido e self corporal visual. (Broucek, 1991; Merleau-Ponty, 1964)

Este movimento de dentro para fora, de sujeito para objeto, trouxe um reconhecimento de nós mesmos, um salto de desenvolvimento da consciência e, inescapavelmente, alguns momentos de vergonha. Com efeito, somo chamados, daí em diante, a encontrar uma forma de nos movermos prontamente do corpo sentido para o corpo visual, construir uma ponte da discrepância do quadro perceptivo interno para a rede social de que depende nossa capacidade de conexão.

Este movimento para frente e para trás pode ser facilitado por uma ação tão simples como fechar e abrir os olhos e, entretanto, é imensamente difícil. Afirma Merleau-Ponty (1960, 1964):

“Deixo a realidade de meu eu vivido para me reportar constantemente ao eu ideal, fictício ou imaginário, cuja imagem especular é o primeiro esboço. Neste sentido, sou arrancado fora de mim mesmo e a imagem no espelho me prepara para outra alienação ainda mais grave, que será a alienação pelos outros”. (p. 136)

Através do olhar imaginado, podemos nos tornar alienados de nosso corpo, como descreve Sartre:

“Se ‘ver enrubescer’ e se ‘sentir revelado’, etc., são expressões inexatas que a pessoa tímida utiliza para descrever o seu estado: o que ela realmente quer dizer é que está física e constantemente consciente de seu corpo, não como ele é para si, mas como é para o outro... Não posso ficar embaraçado com meu próprio corpo, na medida em que existo dentro dele. É meu corpo como ele é para o Outro que me embaraça.” (Citado por Gilbert, 1992, p. 242)

A experiência do espelho nos conduz finalmente para fora do Éden e tomamos consciência de nossa condição separada em um mundo de outros. Essa mudança é tão central e traumática que certas pessoas ficam trancadas dentro de si, isoladas, com sua autonomia intacta às custas de sua capacidade de se relacionar. Outros se trancam do lado de fora, sem acesso a um sentido de self interno, enraizado. Adaptam-se bem demais. Não distinguem facilmente o olhar dos outros de um olhar imaginado, nossa transferência interpretativa. Dessa conjuntura de vergonha surge um falso self, um simulacro para proteger e cobrir nossa nudez, nos manter escondidos – o que Reich chama “caráter”. Nossa vergonha primitiva se origina nas quebras de atenção entre mãe e bebê e o caráter ganha forma inicialmente a partir da resposta somática defensiva de contração, esquiva e rigidez do bebê. O caráter pode, posteriormente, construir sua casa sobre estes alicerces, sofrendo sob o olhar imaginado dos outros. Quando nós, terapeutas, desafiamos o caráter de nossos clientes, é provável que venhamos a encontrar a vergonha. Sartre (1964, 1981) descreve em sua autobiografia como o olhar de seu avô suscitou a criação de um falso self:

“Minha verdade, meu caráter e meu nome estavam nas mãos de adultos. Eu havia aprendido a me ver através dos olhos deles. Era uma criança, aquele monstro que eles fabricaram com suas mágoas. Quando não estavam presentes deixavam seu olhar e ele se misturava à luz. Eu corria e pulava através do olhar, que continuava me dando seus brinquedos e o universo... Eu era um impostor. Como pode alguém encenar um ato sem saber que o está encenando? As claras imagens ensolaradas que constituíam meu papel ficavam expostas por uma falta de ser que eu não podia compreender nem deixar de sentir. Eu me voltava para os adultos, lhes pedia para assegurar meus méritos. Ao fazer isso, afundava mais ainda na impostura. Condenado a agradar, eu me dotava de encantos que murchavam logo em seguida... A encenação me roubou do mundo e dos seres humanos”. (p. 83-84)

Se confrontarmos o caráter trabalhando com e na transferência, os clientes se tornarão mais capazes de tolerar e integrar a vergonha, a vergonha que acompanha o reconhecimento. A vergonha de reconhecimento, enquanto objetificação, é a experiência comum do encontro terapêutico.

Anos atrás, perdi um cliente por ignorar questões de transferência, caráter e vergonha. Por ‘perda’ não quero dizer que morreu, como médicos e cirurgiões vêm a perder um paciente, e também não quero dizer que o coloquei em lugar errado. Meu paciente disse no início do tratamento que sua mãe era muito crítica, uma presença humilhante, e eu escrevi isso nas minhas anotações. Ao mesmo tempo, fez com que eu soubesse o quanto era bem-sucedido no trabalho e que gostaria de obter resultados nas suas questões pessoais o quanto antes. Ele não chorava havia anos e não estava em contato com seus sentimentos, explicou. Sua namorada estava bastante aborrecida com ele. Sugeriu que ele tentasse a Bioenergética e eu havia sido escolhido por motivos que envaideciam e desafiavam minha competência.

Expliquei que o tempo de terapia dele não era responsabilidade minha, porém, dada a minha própria história de vergonha não reconhecida, cai nas garras de um processo em que fiquei tão competitivo quanto assustado como resposta à estrutura de caráter dele. Inconscientemente, eu estava antecipando a vergonha.

Poucos meses se passaram, não aconteceu grande coisa e o descontentamento pairava no ar. Ele estava para sair de férias. Embora eu não pudesse sentir um vínculo sólido entre nós, pensei que seu bom humor atlético era suficientemente forte e coeso para me permitir forçá-lo um pouco no stool, dando socos, batendo pernas e respirando profundamente para destravar a experiência emocional que o havia desconcertado no passado.

Durante a ruptura momentânea a que se chegou afinal, me senti encantado e aberto por sua presença emocional. Toda a sua expressão se suavizou. Fiquei comemorando. Repreendi-o de uma maneira que pensei ser bem intencionada sobre sua fraqueza para socar, em contraste com sua força para dar pontapés e bater as pernas. Minutos depois, vim a descobrir, para minha própria consternação, a diferença entre vergonha de reconhecimento e vergonha traumática.

No momento em que meu cliente finalmente se revelou a mim atravessando a defesa de caráter, respondi, na sua opinião, como sua mãe o faria, ridicularizando sarcasticamente seus esforços, enquanto eu confundia confortavelmente minha vitória competitiva eliciada pela vergonha – uma motivação inconsciente – com o que imaginei ser um sucesso mútuo. Eu havia entrado em um drama de transferência, um conflito edípico que exigia, inexoravelmente, que o engrandecimento de um levasse à diminuição do outro.

Agora, meu fracasso empático por si só poderia ter tido um saldo positivo, como o são muitos fracassos em terapia, mas eu nunca assegurei o tipo de vínculo que o teria trazido de volta. Meus esforços foram prematuros. Não houve retorno para discutir o que aconteceu, nenhuma ocorrência de reconhecimento mútuo e nenhuma escapatória para semanas de auto-recriminação escaldante.

Talvez fosse para eu experimentar a vergonha que ele havia sentido com a mãe como meu último exercício terapêutico, preso no mesmo desamparo para reagir e sem condição de consertar as coisas.

Bem ou mal, experimentei a vergonha de reconhecimento. Estava objetificado pelo meu próprio olhar, o olhar imaginado, horrorizado de meus colegas e o olhar de meu cliente. Aquela re-atuação poderia ter levado a alguma resolução do amargurado conflito mãe-filho entre nós dois caso eu tivesse compreendido a contratransferência, o sinal de antecipação da vergonha e tratado o frágil vínculo entre nós. Se o vínculo fosse mais forte, eu poderia ter usado minha humilhação como uma porta para seu passado doloroso.

Esta experiência me despertou para a centralidade da vergonha na sessão clínica. Minha mulher, que estivera estudando a vergonha por algum tempo, me introduziu à rica literatura sobre o tema. Helen Block Lewis (1971, 1987) estudou a vergonha do modo como se manifestou em 180 transcrições de terapia e observou que “o fracasso em analisar a vergonha, algo existencial na relação paciente-terapeuta, é uma das fontes freqüentes de impasse terapêutico”. (p. 102)

Para mim, a vergonha foi uma experiência fundamental, que governou a minha infância e minhas tentativas posteriores de alcançar uma condição adulta efetiva, como a melhor amiga do meu falso self, minha defesa de caráter. Sei que a paixão carrega em sua sombra a mais escura nuvem de vergonha, como lembrança pavorosa, como ameaça, mas mesmo assim carrega também a promessa da auto-revelação, uma advertência de limites apropriados, o don de ser enxergado, o reconhecimento. A vergonha detém todos os aspectos positivos e negativos de uma sombra poderosa e vital.

Estive vendo na minha clínica o quão global pode ser o impacto da vergonha, uma jogadora chave em diversas situações. Por exemplo, a vergonha não reconhecida, inconsciente, chamada “vergonha desviada” (Lewis, 1987), joga um cobertor sobre a vida emocional. Levantar o cobertor da vergonha possibilita a emergência de todo um espectro de respostas emocionais.

Um cliente reconheceu o caráter penetrante de sua vergonha desviada em sua família e justapôs como alternativa a capacidade de refletir.

“Com vergonha não posso sentir o que está acontecendo. A vergonha me desvia, me impede de ter minha vivência. Não consigo olhar profundamente para usar as fontes de meu corpo e de meu ser. Me sinto envergonhado e me fecho. Quando posso vivenciar algo, posso digeri-lo. Posso chegar a um acordo. A mensagem de minha família era: se for muito difícil lidar com alguma coisa, esqueça. Não havia uma atitude de reflexão na minha família”.

Outro cliente rastreou na família suas dificuldades eréteis:

“A sexualidade era um assunto proibido. Quando eu estava no sexto ano, ouvi dizer que os meninos ficavam com o pênis duro nas costas das meninas. Perguntei à minha mãe o que era aquilo, na cozinha, e ela simplesmente congelou. O telefone tocou, o que nos tirou da estranha experiência. Eu era o centro da vida de minha mãe. Ela entrava numa raiva invejosa quando eu estava com uma garota. Meus dois pais se envergonhavam da sexualidade. Eu simplesmente me anestesiei.”

Uma cliente solitária descreveu seus sentimentos de angústia e vergonha de exposição e auto-aversão na vivência de cortar os cabelos:

“Minha vergonha extrema é o meu rosto e meus cabelos. Para cortar os cabelos, preciso me deparar com o meu rosto e eu não gosto dele. Durante um breve instante, fico aí e digo: ‘Ora, é com isso que me pareço’. Me sinto despida, exposta e violentada, não importa qual seja minha aparência. Eu marco o corte, cancelo e aí eu vou, como se fosse alguém desorganizado”.

Outra cliente relata a vergonha traumática de uma infância em que era molestada por um membro da família.

“Eu assisti aquele programa de tevê sobre abuso na infância no segundo ano da faculdade. Percebi que não estava sozinha. Até então, estivera nas garras da vergonha... Pensei que fosse uma espécie de lepra fora da sociedade. Era um segredo que eu não podia contar a ninguém, porque me envergonhava tanto, como se eu fosse aquele louco, aquele perdedor. Eu me sentia humilhada pelo homem que abusava de mim, porém o confronto com ele não era uma opção. Então esqueça. Eu não pensava naquilo. Não tinha acontecido. Eu ficava acordada, angustiada, às 9 ou 11 horas da noite, com todas aquelas coisas horríveis que havia feito. Oh, meu Deus, e se alguém descobrisse? O medo de ser descoberta me paralisava. Não sei do quê eu tinha tanto medo. Molhei a calcinha e a cama até os dez anos de idade. Eu usava roupas malcheirosas”.

A vergonha sempre traz consigo dificuldades de vínculo e contato. É essencial desenvolver um vínculo forte – o que foi chamado “um bom trabalho de aliança” – para o contrato terapêutico em temas relacionados à vergonha. A terapia tem embutida em sua forma uma hierarquia, uma iniqüidade de papéis que é, em si, um processo permeado de vergonha. Embora os clientes possam ser mais vulneráveis aos efeitos da vergonha por causa da natureza do poder nos nossos diferentes papéis, o terapeuta também é vulnerável.

Schneider (1977) oferece uma definição agressiva de terapia, refletindo os primeiros anos de análise clássica: “A psicanálise é um sistema de interpretação que se esforça em revelar mais sobre o indivíduo do que ele reconhece e deseja mostrar”. (p. 22)

Uma outra definição de terapia por Bárbara Wharton (1990) apresenta uma perspectiva sensível à vergonha: “Uma função essencial da psicoterapia é oferecer um ambiente suficientemente seguro para que o paciente vivencie o seu desamparo; só então ele pode começar a abrir mão das defesas onipotentes que o mantêm preso”. (p. 282)

A vergonha é mais virulenta e destrutiva quando não estamos atentos a ela. O primeiro passo na terapia é identificar o papel da vergonha nas nossas vidas em suas manifestações mutantes. Precisamos nos aceitar com nossa natureza sombria para integrar a vergonha em vez de nos livrarmos dela, e distinguir entre vergonha saudável e destrutiva. De modo geral, podemos identificar um caráter de vergonha nos estados pré-edípicos e edípicos. Kohut descreve a postura ereta da criança altiva e podemos observar o peito caído, os olhos fugidios e abaixados, a pelve retraída ou inerte jogada para frente, todas essas posturas da criança envergonhada. Poderíamos também observar o corpo que se contrapõe à própria vergonha, o corpo que se mantém rigidamente ereto, a pelve trancada, como negação da vergonha. Porém a vergonha é difusa, como um aspecto sombreado dos estágios do desenvolvimento, evidente em todas as estruturas de caráter de Lowen.

Em segundo lugar, como a vergonha corrompe o modo como pensamos a nós mesmos, desestabilizando um sentido de self, na terapia trabalhamos sobre cinco áreas de fundamento do self (Conger, 1994): grounding, limites, respiração, espectro das emoções e desejo de se presentificar. Este trabalho deve ser subjacente ao trabalho de afrouxar a estrutura de caráter de modo sistemático em todo o corpo.

Como terceiro estágio, a terapia assume a natureza de uma livre-associação analítica e corporal, em que o cliente nos conduz. Estados de livre-associação regressivos formaram durante muito tempo a matéria-prima da análise, porém pouco se deu atenção a estados de livre-associação corporal e regressão corporal. A regressão corporal por livre-associação tem sido mais freqüente do que identificada, e talvez não se tenha dado atenção a ela. Podemos permitir que o corpo nos conduza de vez em quando até aquilo que também pode ser descrito como brinquedo.

Quando um cliente começa uma relação de maior associação livre com o self corporal, ele entra no que Winnicott (1971, 1996) chamou de brinquedo, que acessa o verdadeiro self. Não é possível brincar em um estado de colapso ou rigidez por vergonha. O brincar parece ser o inimigo natural da vergonha e o melhor amigo do “caráter genital” que Reich descreve como espontâneo, atencioso, autêntico e direto. Winnicott escreve: “É brincando e só brincando que a criança ou o adulto consegue ser criativo e usar toda a personalidade, e é apenas sendo criativo que o indivíduo descobre o self” (p. 54) Winnicott faz um contraste entre o brincar criativo e a complacência: “a complacência carrega consigo um sentido de futilidade para o indivíduo, e está associada à idéia de que nada importa e que não vale a pena viver”. (p. 65)

No início, muitos clientes não conseguem brincar. Eles estão em crise, em sofrimento, envergonhados, amedrontados e enraivecidos; mesmo depois que sua disposição terapêutica relaxou e melhorou, seus corpos podem reter ainda uma estrutura rígida, incapaz de “brincar”. E, claro, existem terapeutas que também não podem brincar, o que, segundo Winnicott, os torna inadequados para o trabalho. Diz ele: “A psicoterapia acontece na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta”. (p. 65)

Winnicott situa o brincar como uma força curativa no cerne da ferida relacional. O brincar amplia o abismo entre o corpo sentido e o corpo objetificado, desarmando a vergonha associada ao olhar imaginado do outro inerente à experiência de reconhecimento.

“Brincar é sempre excitante. É excitante não por causa da base do instinto, mas por causa da precariedade que lhe é inerente, já que o brincar sempre lida com o fio da navalha entre o subjetivo e aquilo que é percebido objetivamente.” (Playing and Culture, 1968, pps. 205-6)

Às vezes, a regressão corporal ocorre sob a proteção do terapeuta como guardião, que monitora a respiração e movimento de seu cliente. Porém com a mesma freqüência os clientes assumem seus corpos; eles reivindicam o espaço para explorar e regredir, usando o equipamento e as técnicas que se encontram de algum modo fora das prescrições do terapeuta. Às vezes, eles usam o terapeuta como um objeto de aprisionamento. Eles se arrancam do controle terapêutico. Estabelecem limites contra a intrusão e praticam a autonomia e a capacidade relacional nos seus próprios termos.

Essa regressão corporal por livre associação dissolve defesas rígidas da infância que se estruturaram em dramas familiares inflexíveis, duros, e reconstrói somaticamente o self corporificado de modo interpessoal, segundo a função atual do self. A expressão do brincar explora, cria, absorve e, às vezes, é exuberante. Pode-se encontrar elementos sombrios com intensidade imediata, em contraste como o momento presente do self, que promove a integração da vergonha. Afinal, não devemos nos livrar da vergonha, mas aceitá-la como essencial em nossa dinâmica interpessoal e intrapsíquica.

Eu gostaria de descrever o caso de Sarah como ilustração de vergonha traumática solucionando-se como vergonha de reconhecimento no contexto de um jogo somático regressivo de associação livre.

Depois de três anos de terapia, uma cliente, Sarah, descansou o pescoço no suporte cilíndrico de cabeça. Rolou o suporte levemente e emitiu arrulhos em voz baixa. Ela havia entrado em um estado como que de transe e ali ficou, explorando, comigo presente na periferia, fornecendo-lhe espaço e silêncio suficientes. Na sessão seguinte, contou que era impossível aquilatar o quanto se sentia diferente. Sentiu-se apoiada no decorrer de toda a semana. Teve um sonho:

“Eu estava tendo uma sessão com você. Me sentia realmente bem. Adormeci e você me deixou dormir durante a entrevista. Quando acordei, me perguntei se deveríamos repor a sessão. Eu estava duvidando de você. Era um ato de confiança, algo que solicitava que eu tivesse fé e confiança, em vez de falar com você sobre algo de minha vida. Era também estar aberta diante de você, mas, em parte, consistia em me autorizar simplesmente a fazer aquilo, confiando que não faria a menor diferença”.

Podemos dar ao sonho a interpretação de que o exercício havia sido uma perda de tempo, não passara de um sono prolongado, e este aspecto se revela como parte da ansiedade e preocupação da cliente. Porém eu prefiro entender de maneira diferente. No nosso trabalho, seu corpo trouxe a regressão. O sonho ilustra a mudança para um estado infantil muito mais vulnerável, trazendo à tona questões de confiança, na nossa relação, na terapia, em relaxar a vigilância e acreditar na regressão, reconstituindo o conforto da criança adormecida na companhia de um pai ou uma mãe protetora, curando a vergonha do vínculo ferido com sua mãe. A sustentação do pescoço pelo suporte cilíndrico se relacionava aos primeiros meses de vida, quando o bebê depende da mãe para dar suporte à cabeça. Ela estava assimilando a boa mãe suportiva e não precisava mais de meu apoio direto. Podia fazê-lo ela mesma, confortavelmente. Foi naquele estágio precoce, arcaico, que ela, simbolicamente, adormeceu.

O corpo é específico em sua programação, mesmo que não possamos reter conscientemente as palavras ou imagens para explicar a época e o lugar que visitamos. Para Sarah, seu corpo se reorganizou em volta da imagem sentida de mãe suportiva e ela se sentiu “portada” a semana toda.

Na sessão seguinte, ela queria fazer mais trabalho corporal. Ficou de pé, com os joelhos dobrados, como já havia ficado muitas vezes antes. Ela pareceu entrar em si e, figurativamente, ter “fechado a porta”. Parecia enraizada e cedeu rapidamente a uma vibração delicada com um movimento para cima e para baixo, como se estivesse conduzindo um cavalo; expirava com um alívio que era ao mesmo tempo audível e natural, não forçado, e o movimento foi soltando seus ombros aos poucos. Ainda assim, não ficou claro como a cabeça e o pescoço poderiam se juntar ao movimento corporal. Sua pelve também estava contraída. Perguntei o que estava percebendo. Sua resposta assinalava que, à medida que relaxava e sentia prazer no seu corpo, deparava-se com uma vergonha devastadora, uma vergonha traumática que minava sua autoconfiança, sua capacidade de estar em grounding como ser e seu direito de existir no mundo.

Disse ela:

“Minhas coxas estão queimando, minha garganta está apertada. Estou saindo fora da cabeça. Aí me puxo para dentro e sinto minha pelve. Percebo como estou segurando a pelve. Sinto como se estivesse sentada sobre as pernas. Estou relaxando nas minhas pernas. Sinto-me portada pelas minhas pernas. Eu estava pensando no meu corpo como a criação de quem eu sou no mundo. E aí o que me veio foi uma aversão pelo meu corpo. Não gosto muito do meu corpo. Não gosto disso e daquilo. É uma loucura esta coisa e ainda está aí. Eu não deveria ter pele sobre os ossos. Tenho um rolo de carne, é repulsivo. Eu nunca deveria ter tido carne. Meu corpo deveria desaparecer”.

“Lembro-me que você passou por um período de bulimia”, comentei.

“Sim, durante alguns anos. Eu ainda sinto algo com relação à comida, como se eu não devesse comer, como se fosse nojento ter que comer, simplesmente criticando eu e meu corpo. Desde que fiz essa coisa corporal (Bioenergética), tenho tanta energia a mais. Eu costumava ficar tão exausta. Me sinto bem mesmo nas pernas. A queimação foi embora”.

Sarah conseguiu sentir a sua pelve e perceber a contenção. Ela relaxou as pernas. Sentiu o seu corpo como uma criação no seu mundo interno e concluiu que a queimação nas pernas parou e que “sentia muito bem as pernas, agora”. A abordagem energética trouxe à tona a aversão profunda e ela pôde elaborá-la.

Experiências na pelve estão relacionadas à vergonha profunda. Experiências de castração, anseio por pai e mãe, retenção e expulsão de urina e fezes, todas elas se parecem com mitos psicológicos longínquos para muitas pessoas, uma fonte de divertimento e constrangimento velados, porém estes segredos são guardados na pelve e expostos por ela no seu próprio tempo precioso. O complexo de Édipo é, com efeito, um drama prolongado, complexo, interrupções violentas para muitas pessoas.

Sarah estava vivendo uma integração corporal da vergonha. Emergindo das sombras do passado, a imagem intensa sentida de aversão pelo seu corpo se ergueu contra seu prazer corporal presente. A aversão pelo seu corpo reteve em um nível primitivo a desconsideração e falta de atenção de sua mãe para com ela. Sarah reteve tanto o prazer como a aversão no que poderia ser entendido como uma posição somática depressiva. Ela, que sofria com uma infância traumática, podia fazer uma transição para a vergonha de reconhecimento. O aspecto traumático havia se dissolvido antes da presença energética de prazer. Ela pôde ver partes escondidas dela mesma e integrá-las, usando-me para dar-lhe apoio com o meu olhar e minha presença.

A vergonha sempre nos conduz ao vínculo ferido, à confiança quebrada. Para Sarah, a confiança quebrada nos pais e os fracassos na relação estavam sendo lentamente reparados através da atenção à transferência e ao processo energético. Suspeito que a vergonha acompanhe todo trauma. O trauma, a perda e a vergonha devem ser abordados. O trabalho é longo e difícil, o trauma é por vezes excessivamente grave e pede mais do que um trabalho de apoio nas bases. Quando se alcança a vitória sobre estas feridas terríveis só nos resta, como terapeutas, olhar maravilhados para a coragem e os recursos dos nossos clientes, como me aconteceu com Sarah. Na vergonha traumática, somos particularmente impotentes como terapeutas para efetuar uma mudança, nossa persistência e paciência são as nossas melhores ferramentas.

Kohut estabeleceu um contraste básico entre altivez e vergonha, entre postura ereta e postura colapsada. Refazer-se da vergonha significa sentir orgulho de si mesmo e deixar que o orgulho se expresse corajosamente. É inevitável sofrer derrotas e humilhações. Para muitos de nós, a vida foi mais dura que imaginávamos. Somos esmagados ou transformados. Porém, mesmo quando somos esmagados, há maneiras de se recuperar e a Bioenergética ofereceu um modo bastante extraordinário.

Neste artigo, procurei explorar a vergonha de discrição, a vergonha de desonra e a transição da vergonha traumática para a vergonha de reconhecimento através de um processo somático e analítico em que o cliente utilizou um estado somático regressivo do brincar. Sinto-me afortunado por ter clientes que confiaram em mim como testemunha e permitiram que eu escrevesse sobre sua angústia e vergonha profundas.

A questão central da Bioenergética pode ser: é possível vivermos com o nosso fracasso, com o corpo que não podemos mudar como o nosso corpo da vergonha, com nossos terríveis lamentos, como nossa sombra não redimida? Podemos viver e trabalhar diretamente com este aspecto fracassado, não importa quais sejam os nossos dons? Não ensinarmos os outros a perdoarem seus corpos significa que não aprendemos com suficiente profundidade sobre nosso próprio corpo da vergonha.

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Notas:

A palavra inglesa para vergonha é shame. (N.da T.)
No original, “bypassed shame” (N. da T.)
Publicado em: Bioenergetic Analysis, The Clinical Journal of the International Institute for Bioenergetic Analysis, Vol. 12:1:2001. Tradução de Maya Hantower para o Instituto de Análise Bioenergética de São Paulo, Agosto de 2003